Juscelino Sant'Ana
Um conto de fatos
Existem certas coisas na vida que os olhos de um adulto não conseguem entender quando olhamos para trás. Certas coisas acontecem que nós, quando adultos, tiramos a magia que só os olhos de criança conseguem ver. Certas figuras nos parecem folclóricas quando olhamos de volta no tempo, mas se usarmos a memória infantil tudo nos parecerá lógico.
O Oston é uma dessas figuras em que eu não acreditaria se eu não tivesse conhecido quando criança. Ele bem que poderia fazer parte de uma dessas estórias folclóricas criadas por uma mente extremamente fértil. Ele era aquela criança que se destacava das demais pela alegria exuberante, pelo sorriso fácil e pelos movimentos espontâneos que só uma criança poderia apresentar.
O Oston morava com seu pai apenas. Era o pai que todos nós gostaríamos de ter tido. Atencioso, dedicava todo tempo possível ao filho. À medida do impossível, comprava todo presente que nós desejávamos e cumpria os desejos do segundo membro de sua família. Os dois formavam uma família feliz. Assim nós entendíamos.
Ele era aquele menino de que todo adulto gostava, pois a sua atividade não os incomodava; ele não era chato. Todos os meninos e meninas se davam muito bem com ele. Até os animais tinham uma relação especial com ele; parece que eles conseguiam se entender. Meu pai possuía uns cavalos com os quais tirava o sustento da família e toda vez que eles chegavam o Oston ia correndo e os abraçava batendo de leve com uma das mãos em seu dorso como alguém que abraça um amigo que muito preza dando um tapinha nas costas.
Mas o Oston se tornou ainda mais especial por uma característica que só uma criança como ele poderia apresentar. Ele não falava português. O Oston falava uma língua que parecia ter aprendido dos deuses e que só nós (as crianças), os animais e os deuses entendiam. Os adultos não conseguiam entender nada. Cada menino tinha um nome próprio nessa língua que só o Oston falava. Bill era o meu irmão. Eu recebi o nome de Kan. Deveria ser nome de anjos desconhecidos nossos e que o Oston homenageava.
Toda vez que o meu pai chegava com os cavalos cansados do trabalho e com seus lombos molhados de suor, o Oston ia lá abraçá-los e logo corria para o quintal gritando:
- Bill! Kan! Rai quer kal.
Nós, crianças, já sabíamos que deveríamos preparar uma bacia d'água porque os cavalos estavam com sede. E lá estava o Oston abraçando os cavalos e dando seus tapinhas. Os cavalos pareciam responder com acenos e gestos equinos à língua que o Oston falava. Era um ritual de todos os dias. Ele conversava com os animais. Estranhamente, as crianças não falavam, mas entendiam aquela língua.
Um dia nós estávamos brincando como de costume na rua onde morávamos, quando meu pai chegou com seus cavalos. Por alguma razão que eu até hoje não entendi, o Oston não foi abraçá-los. Ao invés disso, ele se aproximou sorrateiramente de um deles, dando um tapão no traseiro do cavalo. Automaticamente, o cavalo desferiu um golpe de ferradura que atingiu o peito de menino do Oston. O Oston voou como o super-homem. Deslizou dolorosamente no chão por quase dez metros.
Quando se levantou, aconteceu o inesperado. O Oston esbravejou duas ou três palavras no seu idioma contra o cavalo. As outras palavras os adultos entenderam:
- Aquele cavalo safado me bateu e me machucou.
Depois disso aconteceu o inevitável. O Oston cresceu, criou barba, engrossou a voz. Nós crescemos. Viramos adultos, tivemos filhos, mas ninguém jamais foi capaz de esquecer aquele Oston de alegria soberba, sorriso fácil e movimento espontâneo que os deuses tinham escolhido. O Oston é um bom rapaz, mas até hoje eu amo aquele moleque.
Ah... essas crianças.
Nenhum comentário:
Postar um comentário